Apesar dos avanços recentes, catadores de materiais recicláveis vivem crise trabalhista

Na linha de frente, a categoria ainda luta pelo direito de sobreviver da coleta de resíduos

Texto: Renata Otaviano
Pauta: Marina Longhitano e Victor Lima Lazarevicius

No Brasil, 90% de todo o material reciclado é fruto do trabalho dos mais de 800 mil catadores de recicláveis que se distribuem em todo o território nacional, é o que apontam os dados do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR). Apesar da magnitude do trabalho desses operários, apenas 25% do lucro desse setor é destinado a associações e cooperativas que empregam os catadores, o restante é atribuído às indústrias que se beneficiam do lucro desta atividade. Os números são um reflexo de uma classe que ainda vive escanteada e luta por direitos trabalhistas.

Em 2002, o Ministério do Trabalho reconheceu a atividade dos catadores como profissão e a incluiu na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) por meio da Portaria nº 397. De lá para cá, diversos instrumentos legais já pautaram avanços e retrocessos para a classe. No entanto, muito ainda falta para que esses profissionais sejam enxergados e respeitados pelo seu trabalho, como explica Marina, catadora há 10 anos que preferiu não se identificar pelo sobrenome, “a gente precisa ter mais reconhecimento, porque as pessoas às vezes criticam, é muito preconceito ainda”.

O que fazem os catadores?

Esses profissionais são responsáveis pela coleta de resíduos sólidos recicláveis e reaproveitáveis como o plástico, o vidro, papelão e alumínio. Trabalhando em residências, condomínios, empresas, escolas e Órgãos Públicos, eles atravessam as cidades e após o recolhimento, esses resíduos passam por uma triagem, pelo processamento e por fim, a comercialização – o papel dos catadores é operacionalizar toda essa logística em uma espécie de cadeia produtiva.

Dados da Central de Custódia da Logística Reversa de Embalagens afirmam que, em 2022 no Brasil, foram reciclados 306 mil toneladas de resíduos sólidos secos, sendo eles: papel e papelão (40,1%), seguido do metal (23,9%), plásticos (23,2%), vidro (11,2%) e outros (1,6%). Esses números demonstram a relevância do trabalho dos catadores dentro das cidades, é a partir da atividade deles que se garante a salubridade e um maior tempo de vida útil dos aterros sanitários, além da diminuição de recursos financeiros das prefeituras no serviço de coleta de lixo convencional.

Na linha de frente de um dos principais serviços de preservação ambiental do país, esses trabalhadores costumam se organizar em associações e cooperativas. É nesses locais que a categoria cria uma comunidade para mobilizar a defesa de seus direitos, mas também para facilitar contratações e negociações com o Poder Público. Foi através desse tipo de organização que nasceu o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis em 2002 e a Associação Nacional dos Catadores (ANCAT) em 2000. Ambos foram pioneiros na luta organizada por direitos trabalhistas da classe. A partir desses grupos os catadores se integram e pressionam a União por políticas públicas de incentivo a coleta seletiva e a dignificação do setor.

Desde o início dos anos 2000, a presença política do MNCR teve força expressiva para mudar os caminhos dos catadores do Brasil. Em 2001, durante o 1º Congresso Nacional dos Catadores (as) de Materiais Recicláveis, o movimento lançou a Carta de Brasília, documento que denunciava a realidade dura dos catadores e reivindicava os  direitos da classe.

1º Congresso Nacional dos Catadores (as) de Materiais Recicláveis, em Brasília (DF), em junho de 2011 contou com a participação de 1700 catadores – Imagem: Reprodução/MCNR

Ao longo dos últimos 24 anos, algumas medidas federais foram especialmente marcantes para o desenvolvimento desses trabalhadores. Entre as mais importantes, destacam-se: 

Para Anderson Nassif, integrante do MNCR e coordenador do projeto na região interiorana do estado de São Paulo, o intervalo de 10 anos entre a lei nº12.305/10 da Política Nacional de Resíduos Sólidos e o novo Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PLANARES) de 2022 se deu graças a densidade e integridade do primeiro documento “por ter ficado engavetada durante anos, essa política teve seu tempo de maturidade, até hoje depois de 14 anos ainda se discute a implementação desta lei”.

Catadores em Bauru

Há 341 quilômetros da capital paulista, a cidade de Bauru vive um reflexo da realidade nacional. Com uma presença forte na política municipal e nas assembleias da Câmara de Vereadores, em 2019, a Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis de Bauru e Região (ASCAM) passou a coordenar os 9 ecopontos – locais de entrega voluntária para coleta de itens descartados, recicláveis ou não – da cidade. No primeiro ano à frente da gestão foram reciclados 144 milhões de quilos de material. Além da coordenação dos pontos de coleta, a ASCAM conta também com um corpo técnico de assistentes sociais, jurídicos, contadores, além de engenheiros ambientais e químicos. Estes profissionais conduzem as medidas de reciclagem e de descarte de resíduos na cidade, além de participarem ativamente de eventos de promoção de educação e consciência ambiental no município.

A COOPECO conta com  32 catadores associados em Bauru – (Divulgação ASCAM)

Enquanto Associação, a ASCAM também gerencia as quatro cooperativas de reciclagem de Bauru, são elas – Coopeco, Cooperbau, EcoRecicla e Cootramat. Assim como em todo o território nacional, as associações não possuem fins lucrativos e o capital recebido é reaplicado em projetos próprios. As cooperativas de trabalho, por sua vez, são contratadas para serviços de coleta seletiva e o lucro é o pagamento que será distribuído entre os catadores participantes. Em Bauru, a ASCAM faz o intermédio da relação entre empresas e Prefeitura, e as cooperativas prestadoras de serviços. “A ASCAM é como um  guarda chuva maior que comporta todas as cooperativas de Bauru, quando a prefeitura vai celebrar um contrato com as cooperativas, com o serviço de separação, ou o serviço de prestação de serviços ambientais, ela fecha diretamente com a ASCAM que faz esse repasse para as cooperativas associadas”, comenta Guilherme Coral, engenheiro químico na COOPECO.

Nas cooperativas acontece a segunda etapa do trabalho duro dos catadores, nos galpões de triagem os trabalhadores passam horas separando materiais e resíduos secos que serão encaminhados para processamentos químicos até estarem aptos para a comercialização ou o retorno à indústria. Coral explica que o trabalho é cuidadoso e atento aos detalhes, “o resíduo reciclável chega todo misturado aqui e a gente faz separação, do plástico, papel, papelão, é claro que dentro desses itens existem vários subitens, por exemplo, dentro dos plásticos existem os plásticos PET, plástico PEAD, plástico PP e infinitas categorias. A nossa função aqui é fazer essa separação minuciosa dos materiais”.

Avanços recentes, os desafios persistem

Segundo o último panorama da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (ABRELPE), os estados do sudeste produzem 49,7% de todo o resíduo sólido urbano no país. Por serem os maiores geradores, são também os que mais coletam o material, o mesmo documento indica que 91,2% dos 645 municípios possuem alguma iniciativa de coleta seletiva. Ainda que esses dados pareçam volumosos, o contexto da produção de lixo no Brasil é outro. Em 2022, ano de lançamento do panorama, o país gerou 81.811.506 toneladas de lixo, desse total apenas 2% foi reciclado. O papel dos catadores nesse contingente é praticamente absoluto – mais de 90% – mas o número baixo é um reflexo da magnitude do problema de descarte de resíduos por aqui.

A falta de engajamento político e o processo de industrialização avançado e desigual atraiu um contingente exagerado de pessoas para as grandes cidades, e gerou um terreno fértil para a produção de resíduos frenética e desorganizada. Neste cenário, criou-se a demanda pelo trabalho dos catadores que estão há décadas sobrevivendo do trabalho de sustentabilidade ambiental. Mesmo diante dessa urgência por uma gestão do lixo, durante muitos anos de atividade os catadores ainda não eram reconhecidos como classe trabalhadora. Hoje, existem diversas leis federais, estaduais, municipais, decretos, resoluções, portarias e inúmeros instrumentos jurídicos que legislam sobre a atividade. Mas os ínfimos 2% de material reciclado em 2022 não escondem o baixo nível de desenvolvimento do setor.

Nas cidades do interior, como Bauru, o quadro é ainda mais complexo. Distante das capitais onde os movimentos e associações têm maior poder de ação, é comum que os catadores dependam de incentivos municipais para garantir seu trabalho. Ainda que a ASCAM bauruense seja motivo de orgulho para a população, esses trabalhadores resistem diariamente a uma realidade dura e preconceituosa que diversas vezes ao menos reconhece a importância do trabalho de vanguarda da classe. Para o coletor de material reciclável Genivaldo Vilela, muito ainda precisa mudar para a valorização dos catadores “a compreensão do povo deveria mudar, deveria ter uma fiscalização maior sobre isso porque acontece sim o desrespeito de alguns munícipes com a gente, [ …] uns 30% é meio preconceituoso, mas não tem que generalizar”.

Como uma promessa por um futuro mais digno, o Decreto Nº 11.414 que regulamentou a criação do programa Diogo de Sant’Ana Pró-Catadoras e Pró-Catadores para a Reciclagem Popular, assinado pelo presidente Lula em fevereiro de 2023 determinou melhorias na condição de trabalho, na inclusão socioeconômica e na expansão de serviços de reciclagem e educação ambiental. No interior, a estipulação desses mecanismos ainda passa despercebida, ainda que a qualidade de vida venha subindo gradualmente. Para a catadora Marina, muito ainda precisa mudar para que esses avanços cheguem à cidade de Bauru, “não senti diferença nenhuma, mas quando eu comecei, eu comecei na rua, na varrição, ali o preconceito era maior, hoje está bem menor”.

Como se sabe a gestão de resíduos acontece, na prática, nas ruas, avenidas e bairros. Essa circunstância implica a necessidade do envolvimento e do querer político de cada Prefeitura para que seja promovido melhorias e avanços para a categoria dos catadores. Ainda que existam decretos e leis federais, a amplitude de adesão a essas medidas passam pelo ímpeto político de cada cidade. Para Nassif, do MNCR, medidas como o Decreto Nº 11.414 dependem, em muitas instâncias, da vontade de cada núcleo municipal, “o município é titular do serviço público, embora o ente Federal faça esforços para melhorar a gestão de resíduos, a iniciativa deve partir da cidade [ …] é de suma importância que o prefeito de fato assuma o seu papel legalmente dentro dessa política pública voltada para gestão de resíduos”, explica.

A Prefeitura de Bauru e a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SEMMA) não responderam o contato desta reportagem para esclarecimentos sobre políticas municipais de incentivo à coleta seletiva de resíduos na cidade.

Ecopix

Em busca por alternativas para aumentar a arrecadação desses resíduos, a Associação dos Catadores de Materiais Recicláveis de Bauru e Região (ASCAM) trouxe uma novidade para a cidade. O ecopix funciona como uma espécie de cartão fidelidade, no qual o cidadão descarta o material reciclável e recebe imediatamente o valor correspondente ao peso dos resíduos em sua conta bancária. Vale lembrar que cada material tem um valor diferente, o alumínio por exemplo vale em média R$7/kg. A iniciativa é também uma maneira de educar a população a fazer o descarte correto de materiais.

Já implementada em outros locais como o Rio de Janeiro, o projeto é inédito no estado de São Paulo e representa um esforço das Associações de catadores para mobilizar os moradores em um debate sobre a produção de resíduos e as formas ambientalmente corretas de tratar resíduos sólidos que serão encaminhados para o processo de reciclagem.

Recicla Bauru

O Recicla Bauru é um projeto antigo, sua primeira edição foi em 2009 durante o aniversário da cidade e sob a gestão da Prefeitura de Bauru. Na época o evento era dividido em diversas atividades que visavam integrar a população às pautas ambientais e ao objetivo sustentável dos 3R’s – reduzir, reutilizar e reciclar.

Parado por 10 anos, o projeto retornou em 2019 com a parceria da COOPECO e da ASCAM, além de outras empresas e instituições do município. Na sua segunda edição, o Recicla Bauru visitou bairros da região do Mary Dota, Beija-flor e Nobugi Nagasawa com o intuito de conscientizar os moradores sobre a importância da separação do lixo e da destinação correta de resíduos recicláveis. Neste ano, o projeto aconteceu no dia 3 de junho no bairro Jaguará e seus adjacentes. Nesta edição o Recicla Bauru estabeleceu um diálogo entre as questões ambientais que tangenciam a produção e separação de lixo e a população.

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