Por que Bauru alaga tanto?

Entenda mais sobre os problemas de drenagem urbana do município e como isso afeta a vida na cidade

Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Por Laís David e Davi Marcelgo

Ruas alagadas, carros arrastados pela água, inundação de propriedades, danos à infraestrutura e ao pavimento e até fatalidades: para muitos moradores de Bauru (SP), esse cenário familiar de chuvas intensas já virou rotina.

Desde 2001, a cidade registrou ao menos 225 desastres que envolvem alagamentos na cidade, como apontam os números extraídos do Banco de Dados de Desastres Naturais do Instituto de Pesquisas Meteorológicas da Unesp (IpMet). 

Razão de preocupação para moradores, de estresse para seguradoras e de debates intensos na Câmara Municipal, a drenagem urbana bauruense é, segundo pesquisadores consultados pelo Impacto Socioambiental, um dos problemas mais sensíveis da política ambiental do município.

Com tanto interesse público e poucas ações realmente efetivas para solucionar esse problema, surge a dúvida: por que Bauru alaga tanto?

Enchentes, alagamentos e chuvas

Enchentes são naturais, mas ocupação humana causa alagamentos. Foto: Reprodução/Unsplash

O manejo da água das chuvas é de responsabilidade municipal e é conhecido como drenagem urbana. A estação chuvosa de Bauru, assim como a maioria dos municípios da região sudeste, é registrada no período de outubro a março, com precipitação média anual de 1.300 mm.

Quando essa chuva cai sob superfícies permeáveis, como áreas verdes, jardins e solos naturais, ela é absorvida pelo solo. As áreas urbanas, ao serem ocupadas e asfaltadas, passam pelo processo de impermeabilização, fator que reduz a capacidade que um solo tem de reter água.

Isso acontece porque os materiais utilizados na pavimentação das ruas impedem a infiltração da água na superfície. “Não existe material impermeável para fins de engenharia, mas existe material com baixíssima permeabilidade, que pode funcionar como um selo [dessa água]”, explica a engenheira civil e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Adriana Soares de Schueler.

Impossibilitadas de penetrar o solo por conta do concreto, a água da chuva segue para condutos subterrâneos através de canaletas, sarjetas e bocas de lobo. Dos condutos, elas são direcionadas para toda a hidrografia da região, em especial a Bacia do Rio Bauru.

Esse sistema, conhecido como drenagem urbana, é responsável por evitar que a chuva se acumule e cause maiores danos para o município e seus moradores. 

Mas por que tudo alaga?

Dezenas de bauruenses já perderam veículos depois de chuvas intensas. Foto: Reprodução/Unsplash

Os alagamentos são um problema recorrente entre diversas cidades brasileiras, principalmente por conta da combinação entre a expansão populacional e a falta de planejamento urbano dos municípios.

Emancipada em agosto de 1896, a cidade de Bauru teve sua ocupação inicial fomentada pela cultura cafeeira e pela expansão da infraestrutura ferroviária. No início do século XX, a chegada das Ferrovias Estrada de Ferro Sorocabana, Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB) e Companhia Paulista de Estradas de Ferro acompanhou um constante crescimento populacional na cidade.

Crescimento populacional de Bauru ao longo dos anos de 1919 à 2020

No processo de urbanização, as águas superficiais eram encaradas como um entrave, devido à propagação de vetores de doenças, à presença do esgoto a céu aberto e às frequentes enchentes.

Como fenômenos naturais, as enchentes foram intensificadas pela ocupação populacional irregular em margens de rios e córregos, que passaram a sofrer com a destruição da mata ciliar, o despejo de esgoto não tratado e o assoreamento.

Cursos d’água, naturalmente sujeitos ao transbordamento em períodos de chuva, ultrapassaram suas várzeas e destruíram pontes, casas e construções feitas ao seu redor, um problema crítico para a expansão imobiliária da região.

“Aqui no Brasil, principalmente entre as décadas de 1950 e 1990, a moda era canalizar rios urbanos para resolver problema de enchentes, já que assim, você desloca o problema para longe”, explica Fernanda Foloni, mestre em Arquitetura e Urbanismo e autora da dissertação Rios sobre o asfalto: conhecendo a paisagem para entender as enchentes

Na época, a solução encontrada pela gestão local era de canalizar os rios, obras que foram realizadas entre 1950 e 1980 pela Prefeitura.

Corrégo Rio das Flores

Cachoeira na nascente do Córrego das Flores. 1934. Foto: Reprodução/NUPHIS

A canalização foi consolidada pelo primeiro Plano Diretor de Bauru, desenvolvido em 1967. A principal obra do plano foi o prolongamento da Avenida Nações Unidas e a retificação do córrego da área, determinando a concepção de “uma avenida de fundo de vale, e a canalização do Ribeirão das Flores, contribuindo na rápida ocupação do setor leste da cidade (bairro Higienópolis).”  

A bacia do Córrego Rio das Flores compreende uma área de aproximadamente 4,7 quilômetros quadrados. O canal principal do córrego tem 5 quilômetros de extensão, no qual está situada a Avenida Nações Unidas.

“Com o loteamento e ocupação gradual da área, os efeitos da impermeabilização da bacia só foi sentida anos mais tarde, e a existência do Córrego das Flores foi sumindo da memória das pessoas”, conta a especialista Fernanda Foloni.

Canalização do Córrego das Flores, 1980. Foto: Reprodução/NUPHIS

As causas para a ocupação irregular dos bairros foram negligenciadas pelo poder público, como lista Fernanda “a supervalorização da terra, que obrigava a ocupação das várzeas pela população mais carente, a falta de um sistema de saúde e saneamento adequado e de acesso a todos; e, principalmente, o despejo de efluentes não tratados nos rios [foram ignorados].”

Além da rejeição dos corpos d’água e a urbanização desordenada, a falta de áreas permeáveis nos bairros também prejudica o escoamento das vias. A presença de jardins, praças, parques e canteiros em áreas urbanas beneficia a absorção de água e até virou lei na cidade de São Paulo.

A obstrução do sistema de drenagem com resíduos sólidos também facilita alagamentos. “A quantidade de lixo que fica nas ruas, suja a cidade. A água da chuva lava a cidade, carrega tudo o que encontra pela frente. Além de sujar a água, este lixo assoreia o rio, ou seja, se deposita no [fundo do] rio e reduz a sua profundidade, o que ajuda na ocorrência de alagamentos”, complementa a professora Adriana.

A limpeza das 7500 bocas de lobo da cidade, que são constantemente entupidas por dejetos, são atendidas por apenas três funcionários, como aponta a reportagem de Bruno Freitas para o Jornal da Cidade de Bauru. A publicação atesta que ‘’são apenas três servidores para atender toda a demanda, sendo dois profissionais, além do motorista’’.

Também vale considerar que as chuvas intensas são cada vez mais comuns. Segundo o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), eventos extremos, como as tempestades tropicais, serão cada vez mais frequentes, fortes e instáveis. Sem um sistema de drenagem preparado para esse iminente cenário, a população pode sofrer ainda mais com as consequências das inundações.

Eventos extremos ameaçam sistema de drenagem urbana. Foto: Reprodução/Agência Brasil

Por conta de todos esses fatores, as chuvas intensas não conseguem se infiltrar no solo, ocasionando alagamentos, perdas materiais e até colocando vidas em risco. A falta de políticas públicas ambientais, as ocupações irregulares do solo, a constante impermeabilização das ruas e a crise climática têm consequências diretas na drenagem urbana bauruense. 

“O problema não é o rio ou a enchente, o problema é que retiramos a mata ciliar que protege o curso d’água de assoreamento e erosão, jogamos nosso lixo que desregula todo o equilíbrio biológico que existia nele, retificados e canalizados com concreto para que a sujeira vá embora mais rápido e ganhemos mais espaço nos centros, e para finalizarmos escondemos ele, porque se tornou um ‘empecilho’’’, atesta Fernanda.

Arte: Impacto Socioambiental

Nações e outros pontos

Impermeabilizada e com seu córrego canalizado, a Avenida Nações Unidas se tornou referência não somente como um importante marco urbano e turístico, mas também como um ponto recorrente de alagamentos. 

Av. Nações Unidas, 1976. Foto: Reprodução/NUPHIS

No período de sua canalização, a região da Nações não era tão pavimentada quanto hoje, o que agrava a situação. “A subdimensionamento da canalização [também favorece os alagamentos], já que o diâmetro do tubo é pequeno, porque a vazão necessária quando o fizeram era menor, uma vez que a bacia não estava tão impermeabilizada como hoje’’, complementa Fernanda.

No último ano, a Defesa Civil divulgou, nas redes da Prefeitura, seis vias com riscos de alagamento que devem ter atenção da população bauruense:

[googlemaps https://www.google.com/maps/d/u/0/embed?mid=1Z7BQ2H7rgaOkIPimYovD5Eenkiz4ARI&ehbc=2E312F&w=640&h=480]

‘Vai chover amanhã’?

Todas as noites, a professora aposentada Maria Silveira, 66 anos, liga para o neto Pedro Lucas de 23. O telefonema, além de uma confirmação atenciosa de que o jovem preparou o almoço do dia, busca sanar uma dúvida: qual a previsão do tempo de amanhã?

Maria se mudou para uma casa de dois andares na Avenida Nações Unidas em 1993. Depois de perder um carro, duas bicicletas e quatro eletrodomésticos com os alagamentos, começou a se preparar para as chuvas com antecedência.

Sem um celular, busca a ajuda do neto para se preparar para os temporais e receber os alertas da Defesa Civil. ‘’Só com ele me ligando que eu consigo saber se fecho mais a casa, guardo o carro e minhas plantas. Eu tinha um Uno que foi levado pela chuva e se chocou com uma árvore. Perda total.”

Seu vizinho, o ciclista Adailton Santos (42), passou por uma situação similar: em fevereiro, a correnteza foi tão intensa na avenida que levou sua bicicleta, seu telefone pessoal e todos os seus documentos. ‘’Revoltante. Minha sorte foi ter um seguro da minha bicicleta que me salvou nesse momento. Caso contrário, eu estaria endividado, é mais de sete mil. Um sufoco.’’

A situação vivenciada por Maria e Adailton deixou de ser exceção – basta indagar lojistas da Avenida Nações Unidas para compreender a dimensão do problema. “Já perdi mais de cinco mil reais por conta desses alagamentos, que levaram minhas cadeiras e mesas’’, conta Lucas*, dono de uma lanchonete que preferiu não se identificar.

Em alagamentos como os da Avenida Nações Unidas, é recorrente a destruição de imóveis, mobília e aparelhos tecnológicos; para agricultores, as enxurradas impactam plantações e produtos perecíveis; para motoristas, o trânsito se torna caótico e arriscado, com horas perdidas no tráfego e danos custosos aos veículos.

Para além de incontáveis prejuízos patrimoniais, os eventos extremos da cidade de Bauru causaram ao menos 4 mortes nos últimos 15 anos. 

Em 2010, o publicitário Rafael Franco Zontini (24), morreu afogado após descer de um táxi, ser arrastado por cinco quadras e ficar preso sob um carro; em 2015, uma criança de nove anos faleceu após ser arrastada por uma enxurrada na Zona Sul da cidade. No ano de 2019, Luciene Regina do Prado Silva (43), e sua filha Bianca Prado da Silva (14), morreram após terem o carro arrastado pela chuva.

“É realmente chocante morar em uma cidade onde pessoas podem morrer em um infortúnio de sair durante o horário da chuva. Isso me dói, principalmente como pai de crianças pequenas, que não sofrem tanta preocupação quando saem na rua”, complementa Lucas*.

O que pode ser feito

Foto: Reprodução/Prefeitura de Bauru

Se os problemas de drenagem urbana são tão comuns entre os municípios brasileiros, qual é a solução? Segundo especialistas consultados pelo Impacto Socioambiental, a crise da drenagem urbana deve ser trabalhada em duas frentes: a prevenção e a mitigação.

A própria ocupação de várzeas de rios é rejeitada pelos especialistas. Naturalmente conhecidas como terrenos inundáveis, essas áreas são suscetíveis a enchentes e devem ser evitadas. Mas, para áreas já ocupadas, como a Avenida Nações Unidas, a solução é um pouco mais complicada.

A prevenção, na maioria dos casos, envolve obras de macrodrenagem e um monitoramento direto de eventos extremos. 

O desenvolvimento de políticas públicas para o controle do uso do solo devem guiar um planejamento urbano sustentável, com a criação de áreas verdes, a permeabilização do solo e o controle da ocupação das áreas de risco.

O solo e a vegetação nativa são responsáveis pela absorção da água da chuva, reduzindo o escoamento superficial, retardando o fluxo da água e, assim, diminuindo o risco de inundações e alagamentos. A infiltração também recarrega os aquíferos subterrâneos, aumentando a disponibilidade de água na região.

Instalações como jardins de chuva, telhados verdes e pavimentos permeáveis são alternativas que também podem auxiliar a drenagem urbana.

A arborização, por sua vez, “não só [ajuda] com o microclima, abaixando a temperatura, e a conectar outros espaços verdes da cidade para passagem da biodiversidade, como também a copa das árvores é capaz de reter a água das chuvas por um pouco mais de tempo, reduzindo a intensidade da descarga que chega ao sistema de drenagem”, afirma Foloni. 

Áreas arborizadas são uma medida de mitigação de alagamentos. Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Quando se fala em chuas fortes, sistemas como os radares do Instituto de Pesquisas Meteorológicas da Unesp (IpMet) são capazes de alertar as autoridades e os residentes locais sobre condições climáticas adversas, salvando vidas e preservando o patrimônio dos moradores. Todos os alertas sobre tempestades, chuvas fortes, vendavais são responsabilidade da Defesa Civil e são realizados via SMS, enviados aos celulares da população. 

O cuidado com o lixo também é protagonista na prevenção de alagamentos. Além do descarte e coleta regulares, a varrição de ruas, a limpeza dos sistemas de infiltração e a manutenção dos canais são medidas que evitam o entupimento de bocas de lobo e o acúmulo de água nas vias públicas.

Programas de educação ambiental 

Além da prevenção estrutural, a educação é outra forma de mitigar os impactos de eventos extremos. Projetos que conscientizem a população sobre riscos de alagamentos e a importância da preservação do ecossistema são formas de amenizar possíveis danos.

“A conscientização a respeito destes valores ecossistêmicos é obrigação de todos, já que dependemos deles para nossa sobrevivência. Alimento, água, habitação, tudo provém da natureza, se não encontrarmos um meio de conviver e nos conectarmos com ela, desastres naturais, fome, guerras por recursos, epidemias, ou seja, o colapso da sociedade, não estaria muito distante”, afirma Fernanda.

A pesquisadora Folini conclui que “explicar para comunidade como aquela intervenção os afeta, ouvir sugestões, ensinar a cuidar do que é público, e a cobrar de seus políticos as intervenções discutidas são formas de garantir que boas ideias saiam do papel e perpetuem”.

Futuro no município

Drenagem urbana faz parte de uma das pautas de concessão do governo de Suéllen Rosim (PSD). Foto: Reprodução/Câmara Municipal de Bauru

Há pelo menos trinta anos, líderes do paço municipal buscam modelos de drenagem que solucionem os alagamentos da Avenida Nações Unidas. O último projeto que pauta a drenagem urbana em Bauru foi apresentado pelo governo de Suéllen Rosim (PSD) de 2023.

O Projeto de Lei 28/23 autoriza a concessão do sistema de esgotamento sanitário do município à iniciativa privada. Além disso, o texto prevê a implantação de um novo sistema de drenagem na Avenida Nações Unidas.

O projeto contempla a instalação de reservatórios de retenção (piscinões) que armazenarão 125 mil m³ de águas pluviais nos períodos de chuvas. 

No primeiro ano da concessão, a prefeitura também prevê a implantação de um sistema de monitoramento na bacia do Córrego Rio das Flores, que deve contar com sensores nas redes de galerias e integração com radares conectados a uma futura central de comando e controle. A expectativa do governo é que o projeto seja aprovado nos próximos meses.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *